1.2 O que é Cultura
Definir cultura é um desafio complexo que gera debates entre estudiosos há décadas. As tentativas de chegar a uma definição singular e simplista tendem a reduzir esse conceito rico e subjetivo. Você pode ver aqui uma longa lista de definições possíveis de cultura que não chega nem a um décimo do que já foi escrito sobre o tema.
Para os propósitos deste livro, buscaremos expandir as perspectivas sobre cultura, reconhecendo sua natureza dinâmica, multifacetada e emergente. Veremos que a cultura não é algo fixo que molda um sistema, e sim um processo vivo em constante mudança.
Exploraremos visões que transcendem noções tradicionais de cultura como um conjunto estático de valores e normas. Mergulharemos nas complexas interações entre indivíduos, grupos e estruturas que constituem o fenômeno cultural.
Este é um convite à reflexão crítica e ao cultivo de uma compreensão mais abrangente do que chamamos de cultura organizacional.
A visão "pop" de cultura
A visão popular no meio corporativo reduz cultura a um conjunto de valores, crenças e normas compartilhados que moldam comportamentos dentro de um grupo, organização ou sociedade. Essa perspectiva tem valor, porém é limitada.
Ela presume uma cultura estática, homogênea e claramente delimitada. A realidade é que a cultura está em constante movimento, com fronteiras porosas entre grupos distribuídos em redes complexas de interações. Os valores declarados com frequência divergem da prática real e existem sempre contradições e tensões entre visões culturais concorrentes.
Assumir a cultura como algo solidificado que pode ser imposto de cima pra baixo ignora seu caráter orgânico, emergente e mutável.
Para além de slogans e determinação hierárquica
Visões superficiais frequentemente reduzem cultura organizacional a slogans, frases de efeito e valores genéricos como "colaboração", "determinação" e "trabalho em equipe" estampados nas paredes. Ou então assumem que a cultura é definida e imposta de cima para baixo pelos líderes ou fundadores.
Ao focar apenas em declarações formais de valores, perde-se de vista se esses valores de fato estão presentes nos comportamentos e decisões no dia a dia. Frases bonitas podem mascarar incongruências profundas na cultura real.
Da mesma forma, assumir que líderes determinam unilateralmente a cultura significa ignorar o poder dos relacionamentos, conversas informais, rituais tácitos e microinterações que ocorrem em todos os níveis da organização e da sociedade.
Impor uma "cultura desejada" via slogans e comando hierárquico raramente gera mais do que um verniz superficial.
A cultura certamente não é aquilo que está descrito no manual do funcionário, não vem do RH e vai muito além da influência das lideranças formais de uma organização.
Cultura como processo emergente
Ao invés de algo que uma organização "tem", a cultura pode ser vista como algo que "acontece" nas interações contínuas entre as pessoas e as estruturas. Não é um estado fixo, e sim um processo dinâmico e vivo.
Essa perspectiva reconhece que manifestações culturais como rituais, símbolos e narrativas são constantemente criados, reforçados ou desafiados nos relacionamentos do dia-a-dia. Não há como controlar ou determinar a cultura unilateralmente.
A cultura não é algo que dá pra você colocar num lugar. Ela transborda qualquer recipiente.
Dessa forma, a cultura organizacional emerge de baixo pra cima, das interações locais, não de cima pra baixo por meio de valores impostos. Compreendê-la como fenômeno auto-organizado, orgânico e espontâneo é crucial.
Múltiplas camadas da cultura
O modelo de Edgar Schein é provavelmente um dos mais populares quando se trata de oferecer uma perspectiva objetiva sobre o que é cultura.
Na ponta do modelo estão os artefatos culturais mais visíveis como rituais, cerimônias, símbolos, histórias, espaços físicos. Porém, sustentando esses aspectos concretos, residem camadas invisíveis mais profundas.
2.4.2 Valores Compartilhados vêm logo abaixo dos artefatos. Apesar de mais profundos, ainda são elementos que as pessoas conseguem articular quando questionadas sobre a cultura. Finalmente, na base do modelo, estão os pressupostos inconscientes que as pessoas nem percebem, mas que ancoram todo o resto.
Essa estratificação nos lembra que intervenções culturais devem considerar não apenas o visível e superficial, mas buscar compreender e influenciar entendimentos tácitos compartilhados que sustentam a realidade cultural perceptível.
Um entendimento errôneo recorrente acerca do modelo do Schein é pensar que, como os pressupostos estão na base, eles devem ser o único foco de nossa atenção. Porém, o autor diz de maneira categórica que pelo fato desses pressupostos serem difíceis de acessar e revelar, seria ingenuidade colocar energia em muda-los diretamente. Além disso, apesar dos artefatos serem facilmente acessíveis e observáveis, inferir os pressupostos que sustentam ou motivam esses artefatos também é uma tarefa muito difícil.
O problema desse tipo de representação piramidal ou vertical, que já exploramos nas nossas críticas ao modelo do iceberg, é que dá a entender que tudo se origina a partir dos pressupostos, da visão de mundo das pessoas. E este é um raciocínio plausível. Dá pra entender a lógica.
Os pressupostos realmente exercem uma força imensurável na manifestação da cultura. Mas nós desafiamos essa interpretação porque ela parece refletir uma visão de mundo que a define de forma linear, ordenada e estável. Como se fosse possível encontrar a causa raiz de todos os problemas: os pressupostos, os modelos mentais... o tal do mindset.
Preferimos, então, representar isso de outra forma, para aproveitar os aspectos relevantes do modelo, mas com uma ênfase na não-linearidade.
Isso tampouco explica o que é cultura, mas nos oferece um modelo útil para argumentar que, ao interagir com este fenômeno emergente, podemos fazer intervenções estruturais na dimensão dos 2.3 Artefatos Culturais. O que é diferente de intervenções que buscam mudar a visão de mundo das pessoas e os valores que elas partilham. Lembre que as dimensões da estrutura social vão muito além desses três elementos e que, embora falaciosos, os modelos nos oferecem recursos que podem ser usados de forma pragmática para intervir na realidade social.
Cultura e estrutura como faces de uma mesma moeda
Cultura e estrutura estão intimamente interligadas, como duas faces da mesma moeda. A estrutura, com todas as suas dimensões, reforça comportamentos e influencia interações.
Por outro lado, à medida que as pessoas interagem dentro dessas estruturas, elas também recriam e influenciam as próprias estruturas, impactando todas as dimensões.
Portanto, cultura e estrutura se afetam dinamicamente através da ação humana. Intervenções em uma dimensão inevitavelmente afetam a outra.
Quando falamos sobre afetar a cultura estamos sempre nos referindo a intervenções na camada dos artefatos culturais, que representa uma das 2.5 Dimensões da Estrutura Social.
Cultura como sistema complexo adaptativo
A cultura pode ser vista como um sistema complexo adaptativo, com propriedades como auto-organização, emergência, não-linearidade, diversidade e interdependência.
Ela não segue um caminho pré-determinado ou lógica linear. Padrões emergem espontaneamente a partir de interações locais, não de comando e controle centralizados. Pequenas ações podem gerar grandes efeitos inesperados que se bifurcam em diferentes realidades.
Dada essa imprevisibilidade, transformação cultural exige mais experimentação do que uma descrição metódica de valores. Insistir em caminhos unilaterais frequentemente gera resistência e disfunções não intencionais. Abraçar a complexidade cultural é chave.
O papel central das narrativas
As narrativas são uma fonte crucial de informações contextuais e relacionais (dados quentes) sobre o estado presente de uma organização e sua cultura. Ao escutarmos profundamente as histórias que as pessoas contam, podemos entender suas dores e anseios mais genuínos.
Isso orienta para onde direcionar os esforços de transformação. As narrativas carregam um desejo de futuro embutido - histórias sobre o que as pessoas gostariam que fosse diferente.
Essas visões alternativas apontam vetores de mudança e nos ajudam a mensurar impacto.
As narrativas que contamos sobre nós mesmos e sobre o mundo ao nosso redor moldam profundamente nossa realidade. Elas constroem significados compartilhados e identidades coletivas.
Narrativas dominantes dentro de uma organização ou sociedade frequentemente refletem e reforçam relações assimétricas de poder. Histórias contadas pelos grupos dominantes tendem a marginalizar ou omitir as experiências de grupos sub-representados.
Transformar essas narrativas exige dar voz e legitimidade a histórias contra-hegemônicas. Isso pode ser feito convidando membros de grupos marginalizados a compartilhar suas experiências, criando espaços seguros para narrativas dissidentes ou incorporando perspectivas excluídas em rituais e cerimônias organizacionais.
As narrativas carregam camadas profundas de significado que vão além do conteúdo explícito. O modo como uma história é contada, a linguagem e metáforas utilizadas, ressonâncias emocionais evocadas - tudo isso influencia seus efeitos. Portanto, precisamos prestar atenção não apenas ao que é dito, mas como é dito.
Transformação cultural sustentável emerge quando contra-narrativas marginalizadas conseguem ressonância e legitimidade suficientes para reformar pressupostos tácitos.
Isso exige paciência, escuta empática e disposição para desaprender velhas histórias sobre nós mesmos.
Múltiplas subculturas e interseções
Raramente existe uma cultura monolítica em um sistema complexo. Há constelações de subculturas definidas por equipes, comunidades de prática, grupos sociais, localizações geográficas etc.
Indivíduos pertencem simultaneamente a múltiplas culturas dentro e fora das organizações. Essas interseções criam tensões e sinergias que precisam ser abraçadas. Impor uma cultura unificada invariavelmente marginaliza vozes diversas.
A Cultura não é fator determinante de sucesso
É comum ouvirmos análises simplistas que creditam sucesso extraordinário de certas organizações ou sociedades inteiramente à sua "cultura superior". Ou então que veem a cultura como culpada por problemas e falta de evolução.
Essas narrativas frequentemente ignoram privilégios estruturais, dinâmicas de poder, contextos históricos e legados de marginalização que foram determinantes.
Por exemplo, quando alguns atribuem avanços econômicos de países do norte global única e exclusivamente à uma pretensa "cultura de excelência", esquecem-se de séculos de exploração, recursos apropriados e conhecimento desenvolvido graças ao colonialismo.
Da mesma forma, líderes que buscam transformar empresas profundamente disfuncionais sem alterar sistemas que concentram poder e reforçam a política interna, mas depois culpam a "cultura resistente" pelo fracasso.
Claro que as questões culturais são importantes, mas supervalorizar o "fantasma da cultura" de forma desvinculada das estruturas de poder e privilégio frequentemente leva a análises rasas e intervenções desastrosas.
Ao compreender a cultura, precisamos ir além dos julgamentos simplórios, das glorificações acríticas e das narrativas dominantes que servem para justificar desigualdades. Isso exige análise crítica e disposição para olhar sob outras perspectivas.
Transformação cultural como jornada contínua
Tentativas de "consertar" a cultura rapidamente costumam falhar porque presumem uma compreensão completa e habilidade de controlar um fenômeno intrinsicamente orgânico.
Transformação cultural é melhor vista como uma jornada contínua, não um projeto de mudança a ser finalizado. Experimentação, evolução emergente, adaptação e aprendizado constante são mais efetivos do que grandes intervenções definitivas.
Não adianta fazer um plano de ação pra cultura. O que podemos fazer é experimentar, sentir e responder.
Conclusão
Neste texto buscamos expandir as perspectivas sobre cultura organizacional, reconhecendo sua complexidade inerente como fenômeno emergente, fluído e multifacetado.
Vimos que é preciso ir além de noções simplificadoras de cultura como um conjunto bem definido de valores e normas. Abordagens simplistas e tentativas de controlar e determinar a cultura de cima pra baixo raramente funcionam.
Compreender a cultura como um processo dinâmico de significados criados nas interações entre indivíduos, grupos e ecossistemas traz possibilidades mais fecundas. Isso abre espaço para intervenções mais orgânicas e humanizadas.
Esperamos que este artigo inspire reflexões e diálogos continuados sobre as muitas dimensões da cultura em nossas organizações e sociedade. E esperamos que, dentro desse processo, novas abordagens voltadas para a emancipação social sejam discutidas e botadas em prática.